17 junho 2006

Alguns subsídios para uma visão histórica aberta

Amigos Félix Gorane e Gabriel Muthisse

Muito obrigado pela vossa participação generosa.
Fico com a ideia de que ambos defendeis uma espécie de africanidade pura, incapaz de ter reacções outras que não sejam aquelas impostas ou motivadas pelos estrangeiros.
Se problemas existem, eles não nos podem ser imputados, as causas sempre residem nos estrangeiros: tráfico, ocupação, situação actual, etc.
Mas creio que nós temos de ter uma outra visão da história, uma visão aberta, corajosa, equilibrada, que seja capaz de nos fazer ver e interpretar as coisas serenamente, mesmo que o resultado dessa forma aberta de ver nos magoe e nos faça sofrer.
Tomemos o exemplo da ocupação colonial no nosso país, onde, no fim do século XIX, não havia mais do que 200 portugueses cá.
Quem faz a ocupação militar em Moçambique durante cerca de 30, 40 anos?
São fundamentalmente alguns milhares de sipaios e de soldados regulares (muitos deles de origem angolana), todos Africanos, comandados por algumas centenas de oficiais e de sargentos portugueses e, no que concerne ao vale do Zambeze, por senhores dos chamados Prazos. Este fenómeno foi tão intensamente africano, que um historiador como René Pélissier escreveu que Moçambique se auto-conquistou.
Poderá a ocupação militar ser explicável pela superioridade militar dos Europeus? Apenas em parte, quanto a mim. Fundamentalmente a «auto-conquista» assentou em três razões básicas: na fragmentação linhageira, na lealdade de milhares de sipaios e no apoio prestado pelas populações quando em protesto contra a rapacidade das aristocracias reinantes. Isso foi, quanto a mim, muito mais decisivo do que o peso dos canhões Gruzon de tiro rápido, dos canhões-revólveres Hotchkiss, das metralhadoras Nordenfedh, das espingardas automáticas Kropatscheck, etc., das tropas comandadas pelos Portugueses.
Em 1888, por exemplo, um explorador francês notava que na Zambézia pequenas revoltas campesinas eclodidas nos Prazos eram facilmente esmagadas por alguns soldados com o auxílio das populações de outras áreas.
Em 1909, o governador da Zambézia, Couto Lupi, observava que havia muitos exemplos da prontidão com que, vou citá-lo, «um revoltado de ontem, engajado hoje como sipaio, não hesita amanhã a atirar [sobre] e a matar os seus compatriotas.» Daí que, acrescentou, bastasse trazer sipaios de áreas distantes de 50 a 60 quilómetros para abafar revoltas locais.
Panos de algodão, despojos de guerra (mulheres, gado, terras), bebidas alcoólicas e cargos de chefes, permitiram a disponibilidade e a lealdade de milhares de Africanos «mercenarizados».
Os sipaios constituem, na realidade, uma peça fundamental não apenas na ocupação militar de Moçambique, mas, também, na reprodução de toda a ordem colonial até 1974. Há, por exemplo, indicações de que muitos sipaios «enriqueceram» com a ocupação.
Mas, por outro lado, não foi, em certos casos, menos decisivo o apoio de muitas populações quando em jogo estava a memória e o ressentimento das predações levadas a cabo pelas aristocracias locais, tal como aconteceu, para só citar dois exemplos, com o Estado de Gaza e com o principado cazembe da Maganja.
A ocupação militar foi acompanhada de uma reorganização das aristocracias reinantes. Mas esse processo teve três aspectos diferentes.
Assim, uma parte significativa delas foi substituída ora por soldados desmobilizados, sipaios e, até, moleques dos oficiais portugueses, ora por aristocratas aliados.
Mas, por outro lado e muito curiosamente, alguns dos mais decididos opositores à ocupação foram mantidos. Há evidências de que eles se tornaram, depois, fiéis aliados.
Finalmente e este é um ponto para mim crucial, em várias partes de Moçambique muitas casas reinantes decidiram optar pela clandestinidade, por um lado dispersando profundamente os centros de comando para evitar a penetração da malha administrativa colonial e por outro e sobretudo, criando «chefes de palha» (cativos, muitas vezes), apresentados aos oficiais portugueses como os verdadeiros chefes locais, através dos quais e à retaguarda dos quais procuravam manter as antigas relações de poder. Este fenómeno foi acompanhado em muitas áreas do País por uma profunda dispersão táctica das populações, tentando escapar ao trabalhado compelido, aos impostos e às conscrições militares.
E assim termino por hoje, meus Amigos.

Os meus mais sinceros cumprimentos.

Geraldo dos Santos

P.S.: Meu Amigo Gorane: na minha modesta maneira de ver as coisas na história, não existem fontes orais mais cheias de verdade do que as fontes escritas coloniais. Fontes escritas e fontes orais sofrem sempre o efeito da reelaboração consoante os períodos, os interesses, etc., o que requer um severo trabalho de aprofundamento e de comparação. O que os nossos velhos nos dizem hoje sobre o passado, não pode, naturalmente, ser exactamente o que se passou, por exemplo, no século XV. A idealização é uma boa coisa, mas nada de positivo traz para o conhecimento histórico.

1 Comments:

Blogger Carlos Serra said...

Muito obrigado pela sua valiosa contribuição.
Não, de forma alguma existem indicadores de que os Portugueses pudessem constituir uma alternativa para as aldeias.
Sobre a auto-conquista, a posição é do historiador francês citado.
A sua hipótese sobre Xipenanhana Mondlane é excelente, plausível.
Apareça sempre.
Respeitosos cumprimentos.

Geraldo dos Santos

terça-feira, junho 20, 2006 9:04:00 da tarde  

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