05 junho 2006

Sobre a escravatura em Moçambique

Recuemos no tempo em Moçambique, permitam-me que vos recorde algumas coisas simples. Creio que foi o Gorane quem falou no comércio de escravos.
A partir de 1505-7, as fontes escritas portuguesas começam a transmitir-nos, ainda que de forma bastante superficial e costeira, pequenos frescos das redes relacionais de interesse e poder.
O que nos mostram essas fontes? Por um lado, que existem pequenos chefes, pequenos árbitros, digamos que moderadores de conflitos. Mas, por outro lado, que existem grandes chefes, aristocratas envolvidos no grande comércio caravaneiro com ouro e marfim, que adquirem armas para assegurarem a protecção das suas esferas de influência, tecendo alianças ora com Árabes ora com Portugueses, metidos em duras lutas pelo monopólio de rotas e de produtos vindos do exterior: é o caso dos soberanos do Mwenemutapwa.
Os anos passam, o comércio de escravos era cada vez mais amplo.
Ouro, marfim e escravos: eis a sagrada família que faz movimentar aventureiros de todas as latitudes. A partir do século XVII há como que uma maior aceleração dos ritmos de contacto, das permutas linguísticas, das hibridações religiosas, mas, também, das provas de força. Se o pano, o bretangil indiano vestem e embelezam, a espingarda faz aprisionar e mata. Aos espelhos, à missanga, às capulanas de então, etc., juntam-se, cada vez, as armas de fogo.
A caça ao homem torna-se uma regra em muitas partes deste actual Moçambique. Barcos negreiros ancoram do Ibo a Sofala, chegam mesmo a Lourenço Marques e partem carregados de escravos.
Quem agencia a caça? Na maior parte dos casos, são as aristocracias e os notáveis locais. São os chefes tradicionais, para usar a expressão hoje consagrada pelo uso, quem detém os cordelinhos últimos dos caminhos do sertão. Vêm as armas de fora? Sem dúvida. São os negreiros exteriores? Sem dúvida. Mas são normalmente locais e aristocráticas as mãos que ordenam e executam do século XVI ao século XIX e, mesmo, nas duas primeiras décadas do século XX. Na verdade, as elites rurais locais possuem redes clientelistas e exércitos especializados nas operações de caça. A sua força não assenta apenas na solidez e na extensão dos acordos inter-linhageiros, mas também e cada vez mais, na quantidade de e no raio de acção das armas de fogo possuídas.
É também por aí e, diga-se em abono da verdade, fundamentalmente por aí, que se pode compreender por que essas elites apresentaram uma tão grande resistência à ocupação militar portuguesa (o caso do vale do Zambeze, por exemplo, é, a esse respeito, emblemático). Na realidade, a ocupação punha em causa os pilares da reprodução escravocrata dessas elites.

Um abraço para todos!

Geraldo